top of page
Buscar

SOBRE CINEMA: A Nouvelle Vague Francesa

  • João VItor Dantas
  • 10 de mai. de 2017
  • 8 min de leitura

"Band à Part" Jean-Luc Godard (1964)

Durante o período do pós-guerra surge na França um dos movimentos cinematográficos mais influentes da história da sétima arte: A Nouvelle Vague. Podemos encontrar reflexos dessa influência na maneira inovadora e provocadora de seus cineastas e filmes em diversas produções audiovisuais ao redor do mundo. A Nouvelle Vague se dá sob o contexto da juventude francesa da década de 60, uma época em que a rebeldia e questionamentos permeavam a cabeça da maioria dos jovens, não só na França como também em grande parte do mundo, como é possível ver com a derrocada dos “anos dourados” do cinema hollywoodiano, a explosão do rock’n’roll nos EUA e o surgimento da chamada “contracultura”.


Na década anterior ao movimento o circuito de cinema francês era bombardeado de produções norte-americanas, e as consequências das guerras ainda eram perceptíveis na sociedade, principalmente nos jovens adultos e na indústria cinematográfica local. Percebe-se nesse âmbito uma constante na história do cinema: um país enfrenta uma crise, as portas da indústria são escancaradas para produções americanas; a primeira reação do país é imitar o modelo americano, questionando-o através de movimentos de vanguarda levando, por fim, a uma revolução cultural. Isso aconteceu na maior parte dos países afetados pelas duas grandes guerras, principalmente na Alemanha, na Itália - como mostra o surgimento do neorrealismo italiano -, e até mesmo em países latino-americanos, como é o caso do Brasil, representado pelo Cinema Novo.


Da esquerda para a direita: Claude Lelouch, Jean-Luc Godard, Francois Truffaut, Roman Polanski and Louis Malle

Exatamente nesse período, na França, jovens como François Truffaut, Jean-Luc Gordard, Eric Rohmer, Jacques Rivette e Claude Chabrol começam suas atividades cinéfilas, incentivados por Henri Langlois, um arquivista de cinema colaborador da Cinémathèque Française, que exibia produções estrangeiras muitas vezes desconhecidas pelo público francês como os filmes de F.W Murnau e D.W Griffith, e também grandes clássicos como O encouraçado Potemkin (Sergei Eisenstein, 1925). As exibições periódicas organizadas por Langlois influenciaram os rapazes de maneira inimaginável, tanto que elas acabariam por resultar em uma das principais características da nova onda: a veneração ao cinema.


Outro notável influenciador do movimento foi o conceituado crítico e teórico cofundador da lendária revista Cahiers du Cinéma, André Bazin. Bazin “adotou” os intelectuais Truffaut, Godard e companhia, que passaram a ser os mais importantes jornalistas e críticos de sua revista de cinema e frequentadores assíduos do seu movimentado cineclube. Nessa época, o museu e as instituições de ensino clássicas foram substituídas pelo “cineclubismo”, e o pensamento crítico à respeito das produções francesas da época, o chamado “cinema de qualidade”, começa a aflorar na cabeça dos “jovens turcos” influenciados pelo cinema norte-americano e pela ideia que culminaria na marca definitiva do movimento: o presença de um diretor-autor.


Os “jovens turcos” (como passaram a ser conhecidos), com pouca preocupação política, amor pelo cinema e uma certa afinidade com a polêmica, acabaram influenciando grande parte da juventude mundial, acabando por chamar atenção da crítica e do público francês pela defesa de produções hollywoodianas, antes esnobadas pelos europeus pela “falta de verossimilhança”. Um deles, François Truffaut, que, apesar de jovem, possuía uma grande bagagem cultural e cinéfila, publicou em 1954 o artigo Uma certa tendência do cinema francês na Cahiers editado por André Bazin, que acabou se tornando um marco da primeira fase do movimento por criticar os rumos do cinema nacional e o papel do diretor na produção fílmica. De acordo com Truffaut, os filmes daquela época eram inexpressivos, convencionais e pouco refletiam o período em que a sociedade francesa vivenciava.


Na visão dos Cahiers, o diretor deveria ser o líder criativo do projeto, e seu trabalho estava sendo deixado de lado pelo destaque dado aos roteiristas do “cinema de qualidade”, como mostra outro trecho de Uma certa tendência do cinema francês: “Depois que entregam seu roteiro, o filme está pronto. O diretor, aos olhos deles, é o cavalheiro que estabelece os enquadramentos... e, infelizmente, isso é verdade! ”.


Godard, Chabrol, Rivette e Truffaut defendiam uma “política de autor”, ou seja, o diretor deveria ter o controle da produção e impor sua visão subjetiva na criação de seus filmes, assim como a literatura e as artes plásticas refletiam seu criador. De acordo com eles, pouquíssimos diretores da época conseguiam se encaixar na categoria de autor, e acabaram encontrando no inglês Alfred Hitchcock, no italiano Roberto Rossellini, nos americanos John Ford e Howard Hawks, e em alguns conterrâneos como Robert Bresson e Jean Renoir as referências de autor que defendiam. Como fica explicito nesta passagem da introdução do livro Hitchcock/Truffaut: “Uns dirigem magnificamente as estrelas e outros têm faro para revelar desconhecidos. Uns são roteiristas particularmente engenhosos; outros, grandes improvisadores. Há os exímios em planejar cenas de batalhas, e os peritos em dirigir uma comédia intimista. A meu ver, Hitchcock os supera porque é mais completo. É um especialista, não desse ou daquele aspecto do cinema, mas de cada imagem, de cada plano, de cada cena. [...] porque domina todos os elementos de um filme e impõe ideias pessoais em todas as etapas da direção, Alfred Hitchcock possui de fato um estilo [...]”. (TRUFFAUT, 1966)


François Truffaut (à esquerda) ao lado de Alfred Hitchcock durante a lendária entrevista "Hitchcock/Truffaut"

Outras marcas do que viria a se tornar a Nouvelle Vague são: as produções de baixo orçamento, influenciadas diretamente pelas produções “B” norte-americanas, como os film noir, que possuíam baixa interferência de estúdios por serem baratos e filmagens precárias; o Neorrealismo Italiano, em que os diretores Luchino Visconti, Roberto Rossellini e Vittorio de Sica foram os principais expoentes da estética que consiste em filmagens em locações reais, luz natural, atores semi-profissionais, semelhantemente ao que podemos encontrar no gênero documentário. Narrativamente, os filmes neorrealistas tinham um roteiro mais “solto” e refletiam o cotidiano popular.


Com essas ideias, inicia-se a primeira fase da Nouvelle Vague, a idealização do movimento, marcada pela atividade crítica dos futuros diretores que definiriam muitas de suas abordagens atrás das câmeras. A regra era quebrar padrões, desafiar noções preconcebidas, estabelecer uma nova linguagem cinematográfica atrelada aos conceitos do modernismo, com temas autorais e viés documental, revitalizando o cinema francês, levando-o para as ruas e para o cotidiano das cidades, explicitando o objeto do “fazer cinema” e quebrando convenções narrativas. Utilizando a descontinuidade, a quebra da quarta parede e planos inusitados, o novo movimento traz consigo uma sensação de novidade e identificação com a juventude, características que faltavam nas produções francesas dos anos 50 ausentes ao realismo poético.


No cinema, os filmes que marcariam o começo da estética da Nouvelle Vague são Hiroshima, meu amor, dirigido por Alain Renais e Nas Garras do Vício de Claude Chabrol, ambos lançados em 1958. Hiroshima, meu amor caracteriza muito bem o movimento; já nos primeiros 15 minutos, o filme revela-se uma mistura de ficção e documentário ao incluir imagens reais sobrepostas a uma narração do ponto de vista subjetivo da personagem principal do filme, indicando também uma influência estética do cineasta Dziga Vertov. Além disso, logo depois descobrimos que se trata de um filme dentro do filme, já que a protagonista é uma atriz e o documentário em questão é um “filme sobre a paz” que motivou sua ida a Hiroshima; essa metalinguagem, e a reverência ao próprio meio – o cinema - é com certeza uma das principais marcas da nova onda. Outra grande referência é exposta nos minutos finais do longa, em que por meio do nome de um estabelecimento cria-se uma intertextualidade com o clássico Casablanca (Michael Curtiz, 1942), associando a história do casal de Hiroshima, meu amor com a dos protagonistas interpretados por Ingrid Bergman e Humphrey Bogart., o que demonstra o valimento de Resnais pelo cinema americano.


O mesmo diretor dirigiu em seguida outro filme (que não associado ao movimento da Nouvelle Vague, e sim ao Nouveau Roman), O Ano Passado em Marienbad (1961) que, assim como Hiroshima, utiliza a técnica da montagem de maneira inovadora, evocando o subconsciente dos personagens, transparecendo as memórias e o ato de esquecimento, fazendo uma relação temporal entre passado e presente digna da montagem soviética, mais especificamente de Eisenstein.


A partir das influencias desses filmes, e das outras, como exposto anteriormente, François Truffaut e Jean-Luc Godard desenvolvem o seu cinema de autor e provavelmente, os dois filmes mais icônicos do movimento. Em 1959, Truffaut lança o seu primeiro longa-metragem: Os Incompreendidos, filme muito bem recebido pelo público francês e que ganhou o prêmio de direção do Festival de Cannes. O longa leva a ideia da “política de autor” ao limite ao apresentar uma história que mistura ficção com “autobiografia”, evidenciada no personagem Antoine Doine, que seria relacionado a um alter ego do próprio Truffaut, já que ele encontra “saída” dos seus problemas indo ao cinema e lendo Balzac. Além disso, o “jovem turco” reflete a juventude francesa partir de uma temática humanista, amoral e rebelde, desprezando as instituições tradicionais – a família, a escola, a polícia, o reformatório – e trabalhando com uma estética documental. Truffaut abandona o estúdio e o set de filmagem e os substitui pelas ruas de Paris, como visto logo na abertura do filme na qual vemos um travelling nas ruas próximas a torre Eiffel.


Cena de "Os Incompreendidos" de Truffaut

Apesar de desconstruir arquétipos do cinema americano (principalmente do film noir) em Acossado (1960), Godard também os homenageia. Roteirizado em parceria com Truffaut, Acossado desenvolve uma história simples acompanhando um fragmento da vida de um ladrão de carros e uma jovem jornalista, personagens que pouco se esforçam para parecerem carismáticos ou até mesmo complexos. Daí surge um paradoxo, já que através da inovadora e autoral direção de Godard, o filme acaba por se tornar muito complexo, subvertendo os clichês do gênero policial e aplicando uma montagem repleta de “artifícios” com intuito puramente estético como o uso dos jump-cuts. Através desses artifícios, Godard quebra a expectativa, promovendo uma descontinuidade entre os planos e expondo a montagem, que no cinema clássico é construída de forma “invisível” através do uso de elementos visuais como os raccords. Com isso, o francês constrói uma das suas principais marcas: a metalinguagem. É o cinema falando do próprio cinema, já que os “cortes secos” evidenciam que o que está sendo mostrado não corresponde à realidade. A quebra da quarta parede, outro artifício utilizado por Godard, revela a interferência de um objeto: a câmera. Portanto, tudo que é mostrado em tela passa a ser uma visão subjetiva do diretor, conceito base da “política de autor”. Apesar de os outros cineastas da Nouvelle Vague utilizarem esses elementos, Godard destacou-se particularmente por ser o mais “experimental”, brincando com a forma do filme e com a linguagem cinematográfica.


É partir desses filmes, que se deu o estouro do movimento. Posteriormente, Godard iniciaria uma parceria duradoura com a atriz Anna Karina, que viria a participar de seus principais filmes no movimento desde então: Uma mulher é uma mulher (1961), Viver a vida (1962), Bande à part (1964) e O demônio das Onze Horas (1965). Sem a presença de Karina é interessante citar também O Desprezo (1963) e Alphaville (1965). Truffaut, após Os Incompreendidos, realiza outros clássicos do movimento como: Atirem no pianista (1960), Jules e Jim – Uma mulher para dois (1962) e Um só pecado (1964). Os outros críticos da Cahiers du Cinéma também produzem longas-metragens notáveis vinculados ao movimento: Jacques Rivette com Paris nos pertence (1961), Éric Rohmer com O signo do Leão (1962) e Agnès Varda com Cléo das 5 às 7. É interessante notar que, graças a “política de autor”, os filmes da nova onda possuem características em comum, mas no geral são visões subjetivas de cada um dos cineastas responsáveis pela produção, o que torna o movimento um dos mais ecléticos e particulares da história do cinema.


Portanto, concluímos que a Nouvelle Vague foi um dos mais importantes movimentos cinematográficos, visto que sua contribuição estética é refletida em diversas obras do cinema mundial, desde o nascimento da New Wave americana, até o cinema novo e o cinema contemporâneo. A influência que “jovens turcos” promoveram é ainda hoje considerada uma marco irreversível da história da sétima arte como é possível observar no papel hoje desempenhado pelo diretor na produção de um filme, e na ideia de autoria, que transformou o cinema de uma simples distração para massas em uma forma de arte complexa, relevante e respeitada.


AUTOR: João Vitor Dantas Rocha Seixas

(Estudante de Cinema e Audiovisual - UFS )


Referências:


MASCARELLO, Fernando. História do cinema mundial. 7.Ed. Papirus Editora. São Paulo. Brasil, 2012.

TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut. 5. Ed. Companhia das Letras. Brasil, 2004.

TRUFFAUT, François. Uma certa tendência do cinema francês. Cahiers du cinema, 31. Ed. França, jan.1954.




 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
CINEMA: O melhor e o pior de 2016

Deixando de lado as horríveis tragédias e os ídolos que foram levados bem mais cedo do que deveriam, 2016 foi um bom ano e trouxe boas...

 
 
 

コメント


Em destaque:
Recentes:
Arquivo
Facebook:

© 2016 por Cinematógrafo. Orgulhosamente criado com Wix.com

Cinematógrafo

bottom of page